Autora: Ana Campos
Na segunda-feira passada, presenciei um acontecimento no mínimo caricato, na rua da minha residência. De manhã cedo, ouvi uma voz feminina a falar muito alto, o que me impeliu a espreitar à janela. A mulher estava no passeio, encostada a um carro, a falar para o último andar de um edifício novo. Achei estranho mas não liguei. Mas a voz alta não se calava e, aquilo que me parecia um discurso entre duas pessoas posicionadas em diferentes andares, afinal era um enfurecido monólogo aos berros. "Caloteira! Anda aqui pagar o que deves, caloteira! Também tenho um filho para criar, também tenho dividas para pagar! Anda pagar o que me deves! Vou dizer a todas as pessoas quem és!" - e disse, inclusivamente o nome. Enumerou um rol de características e factos da senhora que, mesmo quem não sabia da sua existência, passou a saber, com detalhe. "Vem-me pagar os 14 mil euros que me deves! Não saio daqui, podes ter a certeza, enquanto não me pagares." E não saiu. Confesso que a minha primeira reação foi rir perante a inusitada situação. Contudo, quando algumas pessoas se abeiraram da senhora para a tentarem acalmar, chorou. Foi neste choro que se viu o desespero, uma dignidade que já não tinha nada a perder, ou toda a dignidade de quem reivindica o que lhe pertence, o valor do seu trabalho. Entretanto chamou a polícia mas esta, aparentemente, nada pode fazer. "Já chamei a polícia mas não fez nada", continuou. "Mas descansa que eu fico aqui, à tua espera, do teu marido ou do teu filho. Em alguma altura vais ter de sair de casa e eu vou estar aqui, para receber o que me deves!" Assim o fez, sempre aos berros. Imagino a outra senhora, presa na sua própria casa, numa vergonha que já ninguém lhe pode tirar. Poderíamos colocar inúmeras hipóteses para a falta de pagamento mas é coisa que nunca saberemos. Talvez seja fruto da famosa bola de neve. No final da tarde a senhora que reivindicava a dívida ainda se encontrava no mesmo sítio, com a mesma atitude, firme e determinada, mas agora acompanhada pela família ou amigos. Jantou no meio do passeio, sobre uma manta, numa mistura de piquenique urbano e manifestação familiar. Dormiu a noite toda ao relento, abraçada a um cobertor, acompanhada pela família e pelos 2 graus centígrados, como sem abrigos a mendigar o que é seu. Na manhã seguinte outra surpresa, para mim e todos os vizinhos que acompanharam estes dois dias desta senhora. Estava sentada num sofá - sim, num sofá! - no mesmo sítio do passeio, com duas amigas de mantas ao colo, viradas para a porta de entrada e para o portão da garagem do edifício - azar da outra senhora ter todas as saídas de casa viradas para o mesmo lado. De pé, junto às mesmas, estava um senhor de fato - provavelmente advogado da outra - a tentar negociar, mas todas as cabeças sentadas respondiam negativamente. Convenhamos, quem se predispôs a passar uma noite inteira ao relento, no inverno, no norte do país, não ia ceder facilmente! No final da tarde já não se encontrava lá. Tudo tinha voltado à normalidade aparente. Provavelmente recebeu o que lhe era devido. E se a moda pega -normalmente os comportamentos começam por contágio - e passa a ser prática corrente para se exigir o que é seu? Com esta senhora parece ter-lhe resolvido o "problema".
É na falta de pagamento que nasce a nefasta bola de neve, aquela que vai engordando sem se dar muita importância. Talvez o problema tenha surgido quando se começou a facilitar os pagamentos, a 60 dias, a um ano, criando-se vícios e, o pronto pagamento deixou de existir, começou a ser visto como algo pouco moderno, provinciano, dificultador. Falso facilitador. O pronto pagamento do que quer que seja, até do pão, é um bom princípio, o princípio de "não há dinheiro não há vícios". Este exemplo tem de vir de cima, do topo, e facilita a tesouraria das empresas, cria emprego, aumenta a confiança dos mercados, cria fluidez financeira e aumenta os investimentos. Pagar na hora faz crescer a economia em vez de a atropelar.
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